De 'óculos leitor' a maquete tátil: como Unicamp evoluiu para ampliar acesso de estudantes cegos a pesquisas
01/02/2025
Apesar do avanço, professores e alunos com deficiência apontam a necessidade de melhorias estruturais nos campi da universidade. De óculos leitor a maquete tátil: projetos feitos na Unicamp ajudam deficientes visuais
Pela primeira vez na história, a Unicamp reservou vagas de graduação para estudantes com deficiência. A ação inclusiva, que foi implantada no processo seletivo de 2025, acompanha outras iniciativas que buscam tornar a pesquisa mais acessível a PCDs.
Óculos que transformam texto em áudio, placas de circuitos com recursos táteis e sonoros, além de maquetes que podem ser tocadas são parte das ferramentas produzidas na Unicamp para permitir que estudantes com deficiência visual possam desenvolver pesquisas.
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Apesar do avanço, professores e alunos cegos apontam a necessidade de melhorias estruturais nos campi da universidade (leia mais abaixo).
De óculos leitor a maquete tátil: como Unicamp busca aproximar a pesquisa de estudantes com deficiência
Montagem/g1
Eletrônica, cálculos e programação
Um dos exemplos de iniciativas ligadas à pesquisa foi criada pelo engenheiro elétrico Giordano Arantes, que desenvolveu uma placa de circuitos com dispositivo tátil e sonoro no início do doutorado.
A ideia surgiu após uma faculdade entrar em contato com o orientador de Arantes, Luiz Cesar Martini - que já atuava com pesquisas na área da acessibilidade - e informar a dificuldade em incluir alunos com deficiência visual nos cursos de engenharia.
“Os alunos entram num curso de engenharia e na hora de aprender programação e mexer com os circuitos elétricos, esse aluno fica impossibilitado de ser ativo nessas disciplinas, pois essas disciplinas exigem é atividade prática e eles viram só ouvintes”
O orientador, professor de Engenharia Elétrica, já possuía alguns projetos na área, mas ainda não contava com um protótipo específico voltado para acessibilidade no aprendizado em elétrica, eletrônica e programação. Diante desse cenário, o doutorando assumiu o desafio e desenvolveu um protótipo composto por três itens:
Multímetro falante, é um dispositivo que serve para medir tensão, corrente elétrica e valor de um resistor, mas adaptado com acessibilidade tátil e valores em áudio, onde o usuário consegue escutar os valores que estão sendo medidos.
Protoboard com acessibilidade tátil, é uma placa que serve para efetuar testes de circuitos elétricos com diferentes tipos de dispositivos eletrônicos.
Uma segunda protoboard com acessibilidade tátil, mas com sensores programáveis utilizados em conjunto com um aplicativo e permite ao aluno cego aprender a programar sem a necessidade de uma linguagem de programação.
Arantes contou que a placa foi criada com uma impressora 3D e testada com o próprio orientador, que é uma pessoa cega, e “muito fã da parte de elétrica e eletrônica e programação”. O custo de cada placa fica em aproximadamente R$ 600 e podem ser feitos em qualquer lugar.
O orientador também já produziu alguns protótipos como calculadoras que fazem operações complexas como integrais e matrizes que são muito utilizados na engenharia, e por meio de um software que desenvolveu, torna acessível para pessoas com deficiência visual. Atualmente a dupla desenvolve aplicativos para garantir acesso ao YouTube e a inteligências artificiais.
“Uma empresa tão grande como a Google não tem nada que permita acessibilidade para pessoas com deficiência visual acessarem as suas ferramentas”.
Placa de circuitos com dispositivo tátil e sonoro criado na Unicamp que ajuda alunos com deficiência visual
Giordano Arantes/arquivo pessoal
Laboratório de Acessibilidade
Nascido em um projeto de pesquisa em 2002, o Laboratório de Acessibilidade ligado à Biblioteca Central (BC) é outro exemplo na Unicamp. O espaço conta com recursos e ferramentas para alunos cegos e com baixa visão.
Michele Lebre de Marco, bibliotecária responsável pelo local, conta que a ideia nasceu em um projeto de pesquisa de um grupo de professores, mas com o tempo tornou-se parte de um departamento na universidade.
"Nós atendemos pessoas cegas, com baixa visão ou com qualquer outro tipo de deficiência que cause dificuldade para que a pessoa utilize o texto impresso com autonomia. Nosso propósito é justamente garantir que essas pessoas tenham o direito de realizar os estudos e as pesquisas com maior grau de autonomia possível", informou.
Desta forma, Marco explica que o Laboratório oferece serviços para a comunidade interna com adaptação de livros e artigos para formatos acessíveis a pessoas com deficiência com transcrição para áudio de textos, imagens, tabelas e gráficos.
Outra iniciativa é no vestibular, com o fornecimento da adaptação em áudio das obras de leitura obrigatória nos vestibulares da Unicamp aos candidatos que declararem deficiência visual no ato da inscrição.
Além disso, o laboratório possui equipamentos e softwares que visam oferecer autonomia às pessoas com deficiência através da tecnologia. E dentre os aparelhos, ela destacou o “óculos de visão artificial”.
“Ele tem uma câmera acoplada com sistema de escaneamento que faz a leitura em voz dos livros. A pessoa com deficiência coloca esse óculos, posiciona o livro e ele, através do escaneamento feito em segundos, lê o livro para a pessoa. Isso permite que as pessoas cegas ou com baixa visão possam acessar esses materiais impressos com autonomia.”
Óculos leitor possui câmera acoplada com sistema de escaneamento que faz a leitura em voz dos livros na biblioteca da Unicamp.
Laboratório de Acessibilidade do SBU
Maquetes táteis
Outra iniciativa que visa melhorar a acessibilidade de pessoas com deficiência visual na Unicamp vem do Laboratório de Pesquisa Aplicada em Acessibilidade Arquitetônica e Urbana (Lapa), ligado à prefeitura do campus.
Criado em maio de 2024, o laboratório desenvolve projetos como o “Para Todos Verem”, cujo objetivo é melhorar a acessibilidade dos edifícios. Dentre eles as maquetes táteis são os mais adiantados segundo a mestre em Engenharia Civil Edilene Teresinha Donadon.
“As maquetes são feitas no computador e impressas na impressora 3d com filamento PLA. Testamos com funcionários e professores com deficiência visual e os resultados foram surpreendentes”
Ela contou que um protótipo da maquete foi testado com um funcionário que trabalha na Unicamp há 22 anos e ele se emocionou ao tatear o objeto e “compreender finalmente o desenho das ruas desse lugar que ele já detinha muitas percepções”
Outro projeto em desenvolvimento é o 'Guia Vidente' que faz uma audiodescrição do bairro entorno do campus, evidenciando as ruas, avenidas e principais referências urbanas.
“Fazemos este trajeto com um veículo elétrico que atende pessoas com deficiência (VAMUS) até o edifício que o aluno ou professor cego deseja chegar, nele, descrevemos o percurso, localização de sanitários, bebedouros e assim proporcionamos autonomia.”
Ricardo Antunes Barbosa montando a maquete do Cecom.
Edilene Teresinha Donadon/arquivo pessoal
Acesso à pesquisa e dificuldades estruturais
Os alunos e pesquisadores entrevistados comentaram que iniciativas como o "Vamos", um veículo de mobilidade interna, o Laboratório de Acessibilidade da Biblioteca Central, eventos com audiodescrição, cotas para PCDs nos vestibulares e editais futuros para docentes, são diferenciais na universidade.
Anderson Ferreira Souza de Oliveira, estudante de Matemática Aplicada e Computacional, ressalta que o suporte da universidade é essencial. "Isso me dá segurança para me desenvolver", conta.
Apesar dos avanços, os desafios enfrentados por pessoas com deficiência visual ainda são grandes dentro da universidade, aponta parte dos entrevistados.
André Kaysel, professor do Departamento de Ciência Política, perdeu a visão aos 22 anos e leciona na Unicamp desde 2017. Segundo ele, ainda há a necessidade de a Unicamp se preparar para garantir mobilidade aos alunos.
“Falar sobre acessibilidade à pesquisa não se resume apenas a instrumentos, mas no preparo dos prédios do campus de forma estrutural com instalação de piso tátil, rampas e elevadores”.
Amauri Donadon Leal Junior, estudante de doutorado em Ciências Farmacêuticas, explica na prática como esse problema se dá. "Às vezes é meio complicado aquelas calçadas que têm relevos muito íngremes ou que não são lisas. Para quem usa bengala de deficiente visual, você vai tateando ali com a bengala. É complicado pois enrosca bastante".
Isabele Robles também lembra que parte do desafio é tornar mais conhecida as iniciativas da Unicamp e que elas tenham a participação de pessoas com deficiência que realmente saibam as dificuldades
“Nosso lema de luta enquanto pessoas com deficiência é ‘nada sobre nós, sem nós’ então a presença de pessoas com deficiência nesses espaços deliberativos é muito importante para tornar isso mais inclusivo e de fato mais representativo. Às vezes a pessoa sem deficiências, não vão entender tão bem como é a nossa vivência ou não vão ter um olhar que não seja tão tecnicista. Porque a gente precisa de um olhar mais empático. E aí às vezes a vivência de outras pessoas com deficiência nesses espaços é fundamental para a gente conseguir ter esses esse olhar um pouco diferente”, conclui.
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